Bestiarum · Cineclube EA

16 MAR 2021, 18h30 | ONLINE
Les yeux sans visage
de Georges Franju
França, 1960, 90'
+
L'oeil était dans la tombe et regardait Daney
de Chloé Galibert Laîné
França, 2017, 10'

O terrível rosto da normalidade
Carlos Natálio

Certa vez, em conversa com o saudoso programador e crítico de cinema, Manuel Cintra Ferreira, este dizia que cinema fantástico de terror era, em si, uma contradição nos termos. Les yeux sans visage, juntamente com Les diaboliques (1955) de Henri-Georges Clouzot são duas magníficas excepções que confirmam a regra. Um dos motivos de tal axioma, especula-se, é que se considerava o fantástico e o terror como géneros menores aos quais nenhum “verdadeiro artista” deveria rebaixar-se. A juntar-se a uma catalogação estética estaria a questão comercial: o produtor Jules Borkon, consta a anedota cinéfila, teria advertido Franju que não poderia ter demasiado sangue (por causa dos censores franceses), nem tortura animal (por causa dos censores ingleses), nem personagens de cientistas loucos (pois que incomodavam os censores alemães).

Por todas estas razões, é interessante ver esta obra prima de Franju como aquilo que permite que o cinema possa possuir uma dimensão extremamente perturbadora, sem que se assuma como género de terror. Isto é, mobilizando o título como metáfora, trata-se de um olhar que pertence ao choque e ao horror, sem a identidade e a expressão – o “rosto” – com que categorizaríamos esse mesmo género. Les yeux sans visage é um filme que mascara essa identidade, desde logo, pela relação com o gótico. A presença atmosférica (um “conto de fadas realista” iluminado por Eugen Schüfftan), as árvores, as estátuas, a neblina, o cemitério, a mansão onde vivem pai e filha, formulação invertida e patológica da bela e do monstro. Mas mais do que isso, Franju procura na sua mise-en-scène desprivilegiar a dimensão fantástica e gráfica da obra e revelar a bizarria presente nos atos do quotidiano. Numa das cenas mais icónicas, a remoção do rosto de uma das vítimas pelo Dr. Génessier, o que mais perturba é o aspecto procedimental e médico de toda a operação, assim como os detalhes que o inserem na normalidade (os gestos manuais, a respiração, os olhares de médico e assistente). Ou também a extensa sequência no primeiro regresso do doutor a casa revelando toda a objetualidade e indiferença de portas, escadas e passos.

 O vídeo ensaio de Chloé Galibert-Laîné, que acompanha esta sessão, destaca precisamente o facto de não ser o gráfico que angustia o espectador em Les yeux sans visage. Antes de mais é o sonoro, que terá mantido o crítico Serge Daney vários anos afastado do filme, sem o conseguir voltar a ver. E não é apenas o som da picareta na laje na cena do cemitério, como se refere, mas também os sinos no cemitério, o ladrar dos cães, os pássaros, os passos, o comboio ao lado da esquadra. Tratam-se sempre de elementos sonoros que “normalizam” o terror, que intensificam o choque que pode existir na ação do quotidiano. Paradoxalmente, a substituição do gráfico pelo sonoro e pelas imagens adjacentes (Alida Valli colocando as mãos nos ouvidos) tem o condão de transformar Chloé, enquanto espectadora (e nós com ela) num “visage sans yeux”, pois que coloca a mão à frente do ecrã para não ver. É o que acontece quando Franju esbate os contornos entre o realismo da vida banal e a possibilidade do choque a qualquer momento, provindo dessa mesma banalidade. E talvez esse esbatimento seja um bom ponto de partida também para compreender o funcionamento, muitas vezes enviesado e questionável, da questão ética que se coloca com o avanço e experimentação médico-científica que o filme procura, evidentemente, comentar.

 

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