Bestiarum · Cineclube EA

Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens

9 MAR 2021, 18h30 | ONLINE
La Belle et la bête
de Jean Cocteau
França, 1946, 96'

O espelho e o mito: reflexo da ilusão
Vasco Trabulo Bäuerle, Mestrado em Cinema

O filme de Jean Cocteau, La belle et la bête, reinventa a clássica fábula de Leprince de Beaumont. O prólogo apresenta-nos o filme, em tom de charada, sugerindo-nos a magia que se sucederá. Apela a que ponhamos de parte preconceitos e expectativas, a que nos deixemos surpreender e seduzir a cada momento, como se voltássemos a ser crianças. 

As rimas que imagem e som convocam, lembram a potência do sonho e da imaginação, a capacidade de transgredir a realidade e nos deixar transcender. A inventividade e criatividade do autor, Jean Cocteau, que fabrica com exímio cuidado o décor, o trompe l’oil (ilusões visuais) e a luz, convoca-nos uma sensação de deslumbramento, sublimando-se o palpável pela mestria do artifício. Os cenários parecem respirar, as estátuas tomam variadas e inesperadas formas de vida, parecendo ganhar expressão a cada momento, confundindo-se realidade e fantasia. Os personagens parecem mover-se, como se flutuassem. 

A fábula já é por todos bem conhecida, popularizada pela famosa “fábrica dos sonhos” Disney. Não podendo negar a beleza e o caráter exímio das ilustrações bidimensionais, que nos fazem imergir na potência visual da animação, a narrativa toma formas distintas, alimentadas por alavancas visuais somente possíveis nesse medium. A realidade esfuma-se no artifício da imagem animada, distante da materialidade e porosidade da vida. Por outro lado, algumas das escolhas criativas que viriam a tornar-se a imagem de marca desta versão do conto, teriam origem na inventividade e experimentalismo visual do filme de Cocteau.

Em La belle et la bête, cada imagem, cada som, contém uma pincelada de criatividade mágica, alumiada pela banda sonora de Georges Auric, as criações fantásticas do décor por Christian Bérard e a profundidade reveladora das faces dos personagens, do grande plano, de Josette Day que contém toda a graciosidade e gravidade do filme. 

Talvez na sombra do fim da 2ª Guerra Mundial, e do tom fúnebre que pairava à época, o fim do conto revela um modus distinto de entender a estória, como se a besta, finalmente libertada da sua monstruosidade e feiura, acabasse por perder a sua essência, a verdade da sua presença, transformando-se num mortal a todos semelhante, o príncipe belo e encantado do tradicional conto de fadas. Como Cocteau descreveria: “O meu objetivo foi tornar a besta tão humana, tão empática e tão superior ao homem que, a sua transformação no prince charmoso seria para Belle uma terrível desilusão, condenando-a a um casamento e a um futuro semelhante aquele do final de todos os contos de fadas: ‘E tiveram muitos filhos.’”

A ideia de ilusão e reflexo é explorada mais densamente no filme, numa dialética entre exterior e interior, com o papel preponderante e revelador do espelho. O reflexo revela o interior dos personagens, espelhando a verdadeira essência das mesmas, por debaixo da aparente moralidade. Belle e Bête conservam a sua aparência, pois reside uma verdade na sua presença, e é através dela que a sua ligação se torna mais forte. Quando, por outro lado, reflete o rosto das irmãs de Belle, somos confrontados com o seu corrompimento interior, representado na imagem de um rosto envelhecido e de um macaco.

Criando uma peça visual de pendor quase mitológico, distanciando-se da realidade e aproximando-se da metáfora, o filme de Cocteau, La belle et la bête, permanecerá imune ao registo e ao pó do tempo.