28 MAR · 18:30 · entrada livre
Auditório Ilídio Pinho
“Aprender a ver”. Sobre três curtas de António Campos
Há qualquer coisa sobre a passagem do tempo no cinema de António Campos que perturba, ainda hoje, o olhar. Não é que não saibamos reconhecer nas imagens, as paisagens e os territórios compostos pelo enquadramento ficcional da câmara. Mas é como se personagens e lugares fossem uma fusão superior que cria e potencia um terceiro espaço, precisamente um que não se define pelo cinema nem pela tradição.
Este é um cinema sobre o tempo, sobre como o narramos e isso o foi definindo. É um cinema que encena a memória futura, organizando-a para que melhor consigamos lidar com o que permitiu que assim tivesse acontecido. De Vieira de Leiria, onde a miséria social atravessa um curtíssimo filme que é contracampo a todo o cosmopolitismo que se vivia na cidade grande no final da década de 1950, à ilha da Abóbora, desaparecida com o avanço do mar, num prenúncio para o que hoje vivemos como realidade, com os pescadores do atum a serem personagens melvillianos, é um país que se traça enquanto lugar de experimentação visual, narrativa e cinematográfica. Um país tolhido, amedrontado, resistente sem saber conjugar esse verbo, amarrado a uma ideia de si mesmo e ao que lhe diziam ser, como detalhou Daniel Filipe, adaptado à distopia de um país onde amor significa censura, e verdade significa morte. Um Tesoiro, A Almadraba Atuneira e A Invenção do Amor, são reproduções de um país onde a ficção serviu para documentar o real, porque esse real nos surge demasiado inverosímil.
Por isso, o cinema de António Campos, o realizador que sempre quis fazer ficção, mas fez sempre documentários antes que soubéssemos descrevê-los como ficções do real, ou cinema de verdade, é um lugar de experimentação do valor de verdade e memória sobre a própria imagem. É um cinema que fala de e a partir dos corpos no espaço, procurando saber como carregam eles a responsabilidade da história, e como dela se libertam. O sincretismo cinematográfico a que nos sujeita, é revelador de modos de pensar a imagem enquanto elemento de reconstrução de identidades, porque avalia de que modo podemos relacionar-nos, intemporalmente, com a própria imagem. Sabemos os locais, reconhecemos as referências, projetamos as nossas próprias memórias em filmes que abrem espaço ao espanto e à revelação.
Nesse exercício de experimentação, há um elemento constante, o trabalho sonoro que, se em Um Tesoiro, mesmo mudo, é nas expressões do rosto que sentimos a aspereza meteorológica e geográfica – portanto, moral – dos lugares de Vieira de Leiria, em A Almadraba Atuneira, o uso assíncrono da partitura Sagração da Primavera, de Stravinsky, é matéria de gravidade emocional, onde morte e transformação contra o tempo são motores narrativos que exercem fisicamente sobre o nosso olhar. Em A Invenção do Amor – que com Um Tesoiro, António Campos construirá, mais tarde, Gentes da Praia da Vieira – é a mentira da própria imagem que contraria o som que se vai ouvindo, numa cidade que devora a verdade, e transforma a fuga do casal em hipótese de fuga do próprio cinema. Tendo sido retirado da intenção de estreia pelo próprio realizador, consciente que era de que nunca sobreviveria às malhas do regime, A Invenção do Amor é o presente de futuro que António Campos nos legou, como se nos alertasse para o poder da imagem, para a força da sugestão, e para a necessidade de encontrarmos o tempo adequado para a podermos ver, sem ferir a vista.
Tiago Bartolomeu Costa (coordenador do projecto FILMar)