05 MAI 2021, 18h30 | AUDITÓRIO ILÍDIO PINHO
Sessão integrada no Spring Seminar 2021, em parceria com o Cineclube EA, com a presença do realizador
Um estranho e sinuoso caminho
Vasco Barbedo, Mestrado em Cinema
Tive a sorte de acompanhar de forma cronológica os filmes do João Pedro Rodrigues, Parabéns e Fantasma na mesma sessão, Odete, Manhã de Santo António, O Corpo de Afonso, Où En Êtes-Vous, e posteriormente O Ornitólogo. Mas também houve as “lacunas”, como Morrer como um Homem e A Última Vez que Vi Macau que não tive a oportunidade de ver; e os visionamentos tardios fora da ordem cronológica, como O Pastor que ressurgiu agora numa cópia digital, visto muito recentemente.
Mesmo corrigindo a lacuna qualquer filmografia é difícil de explicar ou simplificar por códigos ou abreviações. Eu diria que há nalguns deles a ideia de luto, falta, uma tensão eróticaque se debate com limites exteriores, e também o estado neurótico, como a gravidez histérica de Odete que tem origem numa vontade de compensar a falta ou o estado sonâmbulo dos adolescentes na Manhã de Santo António. E mesmo assim são filmes que continuam a deixar muito por explicar e talvez nem tudo tenha que ser explicável.
Como explicar o trajeto-caminho de O Ornitólogo que cruza um território difícil de localizar geograficamente, num tempo anacrónico, cruzando-se com turistas asiáticas e terminando numa estrada ao som do António Variações? A lacuna, a elipse, o inexplicável e o imprevisível são fatores determinantes neste caminho, provocam-no, agitam-no; caminho que se propõe ser evocação do caminho de Santo António (que já tínhamos visto anteriormente nesta filmografia). O caminho e a personagem tornam-se numa e mesma coisa.
Se Santo António é uma sombra que serviu para escrever este filme, então ele pode ser visto como presença erótica e pouco interessa a biografia, é actor e não ícone, referencia emprestada ao artista ausente do background religioso ou sacro, como Jarman ou Mishima que humanizaram e erotizaram a referência de São Sebastião. Da mesma forma o Afonso Henriques era antes de mais “o corpo” em O Corpo de Afonso, era músculo, pele. Corpos que são projeções, e o facto de o ator Paul Hamy ser dobrado (a voz é de JPR) reforça essa ideia de projeção, é um corpo “dobrado”, estranho, sinuoso, inventado, e outros corpos assim houve no cinema português, como Laura Morante dobrada por Maria de Medeiros em Onde Bate o Sol, corpos que só o cinema pode (re)criar, ou Angela Molina dobrada por Alexandra Lencastre em Coitado do Jorge. (E podia pensar na dobragem como elemento essencial no som do cinema, não será todo o trabalho sonoro no filme dobragem?)
E como explicar a presença muda e longínqua dos pássaros? O momento que mais me impressionou no filme foi esse raccord de olhar do mocho para com o personagem (às vezes guardamos dos filmes imagens, deixas, outra vezes raccords). Põe-se a natureza e o pássaro a observar o ornitólogo e não o inverso. E se olharmos para trás recordamo-nos do gato das manchas em Parabéns, o cão-dobermann em O Fantasma, animais que observam o homem e o perseguem: o devir-animal, também sombra desta filmografia?
O Ornitólogo vejo-o em parte como a “imagem negativa” ou “reverso” do O Fantasma e talvez este filme seja a revisitação do filme inicial. Há parecenças óbvias, há também as diferenças óbvias: neste filme o fundo é radicalmente outro, diferente, não é a selva do asfalto, mas a própria selva (como em Apichatpong: e seria interessante pensar também na influência do mesmo neste filme). E o trajeto parece ser, decididamente, mais luminoso, em direção a uma alegria inicial ou primordial.