30 NOV 2021 - 13 DEZ 2021
Programação de Miguel Mesquita
Uma questão de moralidade
Qualquer impressão é mediada por uma máscara. A façade reputacional que cada um cultiva no seu meio, nos seus círculos, ou até no espaço doméstico. O que se espera de um pai, o que se espera de um filho, de um político, de um dono de uma gelataria... Mas até no frio objeto de inocência que representa o simbólico sorvet, podem habitar as invisíveis impurezas, das quais só é consciente quem as cultivou. E ai! de que isso se espalhe, porque é sempre terrível derrubar os frágeis castelos de cartas das expetativas que os outros em nós enformam (“Nunca te esqueças que um dia serás mãe!”).
Contudo, por vezes os esqueletos no armário amontam a todo um cemitério, e torna-se insuportável à praça aceitar as perversões do outro. Mas independentemente do eventual julgamento popular às reprováveis condutas, levanta-se uma questão maior: com que balança moral se deve pesar as atitudes daquele que não se rege por nenhuma, vivendo alheio à moralidade partilhada?
Com esse questionamento patente, parti assim para a definição do seguinte ciclo de três filmes, com suas temáticas ordenadas num inquietante crescendo, da comédia negra até ao sadismo cómico - passando pela comédia de costumes -, abrindo o debate à comunidade, e forçando talvez o teórico limite nos conteúdos programáveis por um cineclube académico. O enfoque maior do conjunto de obras escolhido passa por um estudo da sexualidade, nas suas vias bataillianas ou sádicas (caso mais evidente na terceira e derradeira projeção), sem que, apesar disso, se circunscreva exclusivamente na matéria.
Happiness de Todd Solondz serve de ponto de partida. Pela perspetiva de três irmãs, são nos apresentadas três diferentes realidades domésticas americanas, e diferentes vias para a “felicidade” feminina, seja pela estabilidade do casamento, pelo sucesso na carreira, ou pela liberdade relacional e sexual. De uma forma ou de outra, cada postura reflete um diferente relacionamento com os homens da sua vida, que surgem caracterizados como criaturas imperfeitas, oscilando entre chave para a tão desejada felicidade e entraves à mesma. Aos assumidos desígnios do ciclo, a maior ênfase recai na dinâmica da família Maplewood, e na desastrosa cegueira de Trish perante a inevitável rotura do seu casamento com Bill, simbólica da decadência e falhanço das estruturas suburbanas americanas - já tão explorada desde o melodrama do pós-Guerra, mas nunca com a perversão e arrojo de Solondz.
Em A Comédia de Deus de João César Monteiro, o titular João de Deus emprega a literal máscara, num evidente prenúncio da exposição dos seus processos culinários, e perversos colecionismos, que esconde behind closed doors. Com Joaninha, atravessará a imperdoável linha da juventude, vendo-se também sujeito ao castigo e à miséria, vencido pela Lisboa que outrora fez fila no seu Paraíso do Gelado.
Salò o le 120 giornate di Sodoma finda o ciclo, com a mais áspera e difícil proposta do conjunto. Pier Paolo Pasolini desloca os contos do Marquês de Sade para a Itália fascista / nazi do final da Segunda Grande Guerra, encapsulando na sua adaptação o terror identitário desta nação no pós-conflito. Quatro homens de assumida respeitabilidade (o presidente, o duque, o bispo e o magistrado) subvertem o culto do regime à juventude e à beleza, num macabro jogo forçoso de tortura e morte. Por entre as obras futuristas que tão bem definem o cunho estilístico do período, renegam de forma não apologética a sua conduta moral ideal para o povo italiano, sem que – ao contrário dos restantes filmes -, tenham que assumir uma dívida posterior pelas suas ações. E o terror reside precisamente por sabermos o desfecho histórico, e por sabermos que estes mesmos senhores de fato e gravata, e as suas milícias, apenas despiram a bandeira ideológica, e retomaram as suas vidas como comuns italianos, com tantos outros alheios aos seus crimes (“-Come si chiama la tua ragazza? -Marguerita”).