Exposição
É Noite Na América
Ana Vaz
04 JUL 2022 – 07 OUT 2022
Curadoria
Daniel Ribas
Um Jardim na Cidade
(sobre É Noite na América)
por Daniel Ribas
Olhamos um horizonte: estamos no planalto que acolhe Brasília, a cidade utopia construída para ser a capital do Brasil moderno. As imagens são impactantes, de uma beleza quase escultórica: como se uma cidade tivesse sido modelada aos poucos, pelas mãos de um super-homem. Esta modernidade faz parte de uma história e de um imaginário de um futuro nunca atingido, de um projeto de nação nunca cumprido. Desse projeto, o que resta é uma história de vencedores. Uma história que oculta a memória de esquecidos e precários; uma história de poder das elites sobre um povo em nome do qual se erigia uma cidade. Aliás, a ideia de cidade é um dos pontos de partida para esta história de ecoterror: o confronto impossível entre uma existência prévia e aquilo que a cidade arrasa.
Estruturada em três ecrãs que envolvem o visitante, É Noite na América, de Ana Vaz, promete uma aventura onde esta cidade – tão cara ao trabalho da cineasta – se confronta com uma vida alternativa, aquela que está além do bulício quotidiano. Uma vida de animais em cativeiro, animais que são “resgatados” da sua imprudente entrada na cidade. A exposição instala-nos, à partida, num espaço de estranheza, que se repete diversas vezes: a de sons estranhos, alienígenas, convocando referências dos filmes de terror para “assustar” o visitante. Estamos num espaço que nos retira do familiar, do quotidiano citadino. Sons de tachos remetem também para um espaço político – o do barulho contra um governo da cidade (Brasília como capital) e contra os espaços de violência por ele construídos. Sons que remetem para a distopia política, atual e histórica.
Partimos dessa distopia em direção à noite, no limite da visibilidade, jogando com a sensibilidade à luz (ou a falta dela) da película fora de validade que Ana Vaz utiliza. Este lado físico – constituído por materiais já desprezados – reforça a vontade de colocar o visitante num espaço liminal, que é um espaço de dúvidas e contradições, mas também um espaço de abertura para qualquer coisa de novo: de um porvir da natureza e da sua existência. A película fora de prazo reforça a taciturnidade que a cidade nos impõe: com as suas luzes vagas, os vermelhos estridentes dos carros, a chuva torrencial – com as suas tempestades e trovoadas –, e uma sensação de entrarmos num filme policial. A câmara (numa inquietação vigilante) parece procurar algum indício no meio do quotidiano febril do princípio da noite (o momento em que, pela falta de visibilidade, somos obrigados a encarar o desconhecido). É uma câmara que às vezes também segue pela estrada fora, qual road movie, parecendo deambular sem parar. O que procura esta câmara? A cidade labirinto abre-se para nós: uma cidade-betão, uma cidade-carro, que violenta a escala humana, como antes violentara todos aqueles que fizeram parte da sua história de construção.
Nesta visão desoladora, somos surpreendidos pelos animais, que “imprudentemente” invadem a cidade. Vemo-los vagueando pelas estradas ou então já “resgatados”, vivendo no Jardim Zoológico de Brasília. As imagens destes animais são impressivas: como se pressentíssemos a tristeza nos seus olhos, uma inquietação que perpassa também um certo desespero, um desencaixe entre eles e a cidade-utopia. São imagens de ausência de afeto: eles estão sempre cercados de grades ou aparelhos protetores. Os homens que os salvam ou deles tratam estão sempre “protegidos”; alguns deles parecem quase militares, e essa aparência demonstra subtilmente a guerra sobre a qual as imagens nos colocam. Uma guerra surda, minimal, onde está claro quem são os vencedores.
Há uma sugestão, em todo o caso, de uma espécie de golpe – e é aí que É Noite na América se desloca, se transforma: nas imagens impressionantes, gigantes, de uma coruja, que enfrenta diretamente a câmara, desafiando o visitante e o seu olhar. O dispositivo instalativo cerca, nesse momento, esse visitante, não o deixa fugir desse golpe recriminatório. Regressa aí, a trilha sonora de Guilherme Vaz, que várias vezes pontua o filme. É uma trilha intensa, misteriosa, impositiva, tal como o olhar da coruja nos interpela.
Intermitentemente, a instalação é separada por regulares ecrãs azuis, ao mesmo tempo que a cidade é filmada no limite do lusco-fusco. A noite americana (técnica de cinema que permite gravar de dia parecendo ser noite) é transformada na noite da América, um distópico filme sobre o abismo da cidade-utopia no vazio da contemporaneidade. O que restará depois do fim do mundo?