Incursões Experimentais · Cineclube EA

Fenómenos Entópticos - Sessão de curtas metragens experimentais

27 ABR 2021, 18h30 | ONLINE
Fenómenos Entópticos - Sessão de curtas metragens experimentais

A militância do deslumbramento - pistas para um panorama do cinema radical
Manuel Pereira, tradutor e editor

O cinema que faz da experimentação o seu ponto de partida, e que, também por isso, não se inibe de desarranjar as ideias pré-concebidas do que este deve ser, torna-se radical, intransigente nesta sua busca de essência, remetido por imperativo ético e complexidade estética para uma certa ideia de marginalidade. Descarna camadas adicionais que o cinema que se tornou mainstream impôs e foi acumulando – a narrativa, uma lógica de organização espacial e temporal, um encadeamento castrador – muitas vezes herdados do teatro e/ou da literatura. 4 como tal, alheados desse esforço de depuração que o cinema experimental pressupõe e empreende, numa aventureira busca da raiz formadora e definidora da arte e(m) movimento. Aquilo que aparenta ser um pressuposto limitador, potencia, como é notório nos exemplos aqui apresentados,  uma quase ilimitada riqueza de propostas e soluções, muitas vezes  contraditórias, mas sempre desdobrando-se numa entusiasmante gama de  opções estilísticas que enformam um fazer cinematográfico que é também,  sempre, um pensamento sobre cinema.

O cinema experimental representa assim essa busca incessante, uma curiosidade primordial que a rotina vai tornando mais rarefeita e conformada, e a retina, agora devidamente estimulada, resgata ao marasmo. Cinema que confronta a tradição, mas que bebe da sua História, que muitas vezes busca nas suas origens remotas a inspiração para o despir dos artifícios que revestem de clausura narrativa o puro e militante deslumbramento do olhar.

Window Water Baby Moving
de Stan Brackage
Estados Unidos da América, 1959, 12'

O líquido amniótico omnipresente, como metáfora envolvente e primordial, e uma montagem fragmentada que retalha a sequência narrativa convencional e o seu poder impositivo - é um olhar que se autoriza à mais visceral intimidade,  brutalmente honesta, a uma beleza explícita e intensa, sublime de uma violência que é a do ciclo da existência, do nascimento à morte. 

Gerorisuto
de Shozin Fukui
Japão, 1986, 12'

Num filme vincadamente voyeurista, pautado por uma intromissão no espaço público e no olhar dos transeuntes, a mulher circula numa histeria febril e animalesca (a lembrar Possession de Andrzej Zulawski), e o corpo autoriza-se a essa regressão – vomita, estará possuído por uma entidade demoníaca? Será essa encenação irracional a marca de uma presença paranormal, externa, ou o exagero da sua inadaptação, o forçar do confronto numa performance que cruza linguagens e desmonta expectativas ?

At Land
de Maya Deren
Estados Unidos da América, 1944, 15'

Herdeiro da estética de um surrealismo mais clássico, este é um filme deambulatório e labiríntico, que invoca uma narrativa paralela a partir do mar como espaço de  gestação, escapando da clausura da racionalidade e do mundo natural e  intrometendo-se numa outra realidade - amplificada, intensificada, sinestésica.

Don't - Der Österreichfilm
de Martin Arnold
Áustria, 1996, 4'

O olhar que escava os arquivos e se confronta com memórias partilhadas ou imaginadas é a marca identitária do cinema que recorre ao found footage para se constituir. Não tão rítmico e assente em jogos formais como alguns outros filmes do autor, há aqui uma estratégia estilística recorrente (o uso do rewind) que remete para esse olhar para o passado, além de um tom mais onírico, marcado pela lentidão e por um lullaby entoado em loop, sereno e assombrado.

For My Crushed Right Eye
de Toshio Matsumoto
Japão, 1968, 15'

Inserido no psicadelismo japonês, enquanto corrente estética e conjunto de estratégias, incorpora outras linguagens que aqui se complementam, como sejam a música, a ilustração, o design gráfico ou a fotografia. O dispositivo essencial é o duplo ecrã (que também podemos encontrar em obras essenciais como Chelsea Girls de Andy Warhol ou em alguns dos filmes iniciais de Werner Schroeter). Potencia-se um simultâneo diálogo e confronto entre ambos. O filme assenta em grande parte nessa complexa ligação, uma dualidade que o olhar constrói pela articulada desregulação das sequências visuais, das suas temporalidades e encadeamentos. Como os dois hemisférios cerebrais que se alimentam um do outro e necessitam dessa aspiração à unidade, este cinema é o de uma revolução mental mais que política, visual, de pura imaginação.

Take the 5:10 to Dreamland
de Bruce Conner
Estados Unidos da América, 1976, 6'

Nome pioneiro do found footage, este filme é uma incursão quase psicanalítica nos EUA como território fundado no trauma, uma terra intocada ainda por desbravar pelos pioneiros de uma imagem ruminada em lirismo e sonolência.

Coyolxauhqui
de Colectivo Los Ingrávidos
México, 2017, 10'

Caótico, com uma estrutura rítmica decalcada do free jazz, o filme não permite que o olhar se fixe na paisagem; ao invés, este afunda-se nela, teme-a e ao seu desfocado frenesim alucinatório. Encarnando a sinestesia como fio condutor, provamos o ritmo, deliciamo-nos com o som das cores, ensurdecedemos com o lixo e as carcaças que habitam a parte final do filme, mais fúnebre e hipnótica.

Thunder
de Takashi Ito
Japão, 1982, 5'

Um pulsar glitchy marca todo o filme, criando um minimalismo ameaçador em que uma imagem é recorrente: a mulher esconde os olhos com as mãos – do que pretende escapar? O que é que não quer ver? Híbrido e opressivo, entre o cinema e a instalação, pela ocupação do espaço e pelo desdobramento que a montagem possibilita.

Fuses
de Carolee Schneemann
Estados Unidos da América, 1967, 18'

Pornografia descontextualizada pela ampliada fragmentação dos corpos, agora isolados na atomização de um desejo não autorizado, clandestino, e do olhar que lhe dá guarida, pelo tendencial diluir da emulsão química e sua primordial configuração.

Dream Work
de Peter Tscherkassky
Áustria, 2001, 10'

Denso e excessivo, como uma overdose de imagens resgatadas aos arquivos do cinema, de que o cineasta se apodera e esventra num notável trabalho de cirúrgica reconversão da matéria e do processo. Pesadelo saturado num preto e branco intenso e incisivo, levado ao limiar do visível por uma microscópica e epilética implosão, no sentido do puro estímulo visual e rítmico.

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