27 ABR 2021 - 11 MAI 2021
Programação de Benjamim Gomes
Por uma prática artística descentrada da narrativa tradicional
Enquanto ex-aluno do curso de “Som e Imagem” na Universidade Católica, convivi diariamente com outras pessoas à procura de uma voz dentro da prática do cinema. Por mais técnica que seja a inclinação dos alunos do curso, estes, eventualmente, deparam-se com a necessidade de desenvolver um projeto. E, mais, do que uma vez, sentem-se perdidos como moscas a baterem num vidro, e decidem refugiar-se na narrativa tradicional. Ou pelo menos numa tentativa aproximada da mesma como núcleo para as suas primeiras obras.
Embora obviamente entenda que a procura da visão artística depende única e exclusivamente do artista, sinto que em três anos de licenciatura, podia ter havido algum ponto de entrada na consciência coletiva dos alunos do que é, concretamente, o cinema experimental e as possibilidades do mesmo. Reduzido na ótica de muitos a pseudo-intelectualismo ou a simplesmente documentários não tradicionais, o cinema experimental claramente é muito mais do que isso. Representa não só a procura de ultrapassar as fronteiras do próprio cinema como também a libertação da tradição, do arco narrativo e da cronologia temporal. Sendo também a sua presença na consciência de novas vozes do meio - mesmo que acabe por não ser representante da prática destes indivíduos -, pode funcionar como contrapeso mais que necessário, algo que mostre o tipo de liberdades que se pode tomar dentro do espectro do cinema.
Tentando então servir como exemplo das possibilidades que o cinema experimental traz, surge este ciclo, intitulado Incursões Experimentais, numa proposta que, ao longo de três sessões, nos leva desde curtas metragens experimentais não narrativas a longas metragens narrativas e a um cine-concerto.
Desde o início do próprio cinema experimental que a relação do mesmo com o olho está presente, servindo de exemplo filmes como Filmstudie (1926) de Hans Richter ou Un Chien Andalou (1929) de Luis Buñuel onde este órgão é figura central. Nesta sessão, intitulada Fenómenos Entópticos, intitulada como referência aos efeitos visuais originados no olho em si, iremos atravessar dez curtas metragens experimentais, partindo do cândido documentário Window Water Baby Moving (1959) de Stan Brakhage, que nos mostra o nascimento do seu primeiro filho, até à peça meta cinemática Dream Work (2001) de Peter Tscherkassky em que o realizador manipula o próprio tecido fílmico de The Entity (1982), de Sidney J. Furie, substituindo o poltergeist transgressor antagonista do filme original pela própria película que, à semelhança de Lúcifer no Nono Círculo do Inferno descrito por Dante na sua Divina Comédia, tritura a atriz principal viciosamente.
Os restantes oito filmes que compõe esta sessão são; Gerorisuto (1986) de Shozin Fukui, At Land (1944) de Maya Deren, Don’t - Der Österreichfilm (1996) de Martin Arnold, For My Crushed Right Eye (1969) de Toshio Matsumoto, Take The 5:10 to Dreamland (1976) de Bruce Conner, Coyolxauhqui (2017) do colectivo Los Ingrávidos, Thunder (1982) de Takashi Ito e Fuses (1967) de Carolee Schneemann todos eles escolhidos e ordenados para transmitirem esta abstração progressiva do real e do narrativo ao longo dos dez filmes.
Na segunda sessão, intitulada Pesadelos Industriais, iremos ter uma double feature de duas longas metragens icónicas, tão próximas como gémeos sesquizigóticos, que nasceram sem budget, produzidas apenas pelos respetivos realizadores, representando assim a visão artística pura que as elevam ao seu estatuto lendário. Estas duas longas metragens são Eraserhead (1977) de David Lynch e Tetsuo: The Iron Man (1989) de Shinya Tsukamoto respetivamente. No primeiro filme, temos a história de um pai e do seu filho mutante que preenche um espaço industrial e surreal desolado. Apesar do pouco reconhecimento inicial, a popularidade do filme e o estatuto de culto foi ganho nas midnight sessions à semelhança do clássico de Alejandro Jodorowsky, El Topo (1970). O segundo filme, apresenta-nos a história surreal de um homem atormentado por visões de metal e máquinas industriais que progressivamente se transforma num monstruoso híbrido de homem e máquina sendo uma das estrelas mais brilhantes na constelação do cinema cyberpunk japonês, encabeçado por realizadores como Sogo Ishii, Shozin Fukui e Takashi Miike. Outra caraterística comum destes dois filmes é a sua banda sonora, composta por música industrial e noise, géneros musicais surgidos sob a alçada da música experimental e que partilham o seu ethos. Nestes géneros temos como bons exemplos o trabalho de bandas como Einstürzende Neubauten ou Throbbing Gristle que utilizavam objetos como barras de ferro e ferramentas de construção, mas também instrumentos desenvolvidos pelos próprios músicos para transmitir a sua visão específica incapaz de ser traduzida pelo equipamento existente e quebrando assim a tradição musical da altura à semelhança da quebra do cinema contemporâneo dos dois filmes apresentados nesta sessão.
Para concluir o ciclo, teremos o prazer de ter connosco Ricardo Nogueira Fernandes, trabalhando sob o nome ∩ (intersectiō), num cine-concerto em colaboração com o cineclube EA. Nesta sessão, irá ser explorada a relação da civilização com a cor azul, que, devido à dificuldade em ser sintetizada para utilização, foi a última cor primária a surgir no léxico das primeiras civilizações afetando assim a própria compreensão ao nível psicológico da cor. Esta é, por exemplo, descrita por Homero na Ilíada como “vinho escuro”. Esta sessão irá assim encapsular o ciclo utilizando as referências do cinema e da música experimental para a sua realização.