Corpus / σώμα · Cineclube EA

25 MAI 2021, 18h30 | AUDITÓRIO ILÍDIO PINHO
Pumping Iron
de George Butler e Robert Fiore
Estados Unidos da América, 1977, 86'

O bodybuilding e o futuro do género
Miguel De, fotógrafo

Arnold Schwarzenegger é um ícone. Durante as filmagens de Pumping Iron, filmado em 1975 e estreado em 1977, tem apenas 28 anos, mas já está no fim de carreira de competição como bodybuilder e carrega às costas cinco vitórias consecutivas do Mr. Olympia, a maior competição profissional de bodybuilding do mundo. Todos os bodybuilders que aparecem no documentário sabem o seu nome, idolatram a sua carreira e são fascinados pelo seu corpo. Um corpo sobrehumano, intumescido para lá dos limites naturais. Um corpo que nos pode desvendar um futuro em que o género não é relevante ou até nem existe.

John Berger disse que “os homens agem” e “as mulheres aparecem”, sublinhando o tropo de que o homem avança a história e a mulher serve-se ao embelezamento, ao sujeito passivo de apenas existir para proveito de outros. O corpo de um bodybuilder, seja homem ou mulher, dá-se à confusão do género, é simultaneamente masculino e feminino: dilata-se para lá do normal para sublinhar o peso da virilidade, os músculos empurrando a pele e as veias numa demonstração de força, de invencibilidade, o super-homem capaz de avançar a história de um qualquer épico, apenas para se dar à apreciação, à aparência, à exibição; é um corpo que no auge da sua aparência de força se encontra mais fraco, mais frágil, desidratado, subnutrido, a pele mais fina que uma folha de papel. É um corpo hiper masculino que se dá a uma prática hiperfeminina. Como Susan Bordo disse, “é feminino estar a ser-se exibido”.

Um bodybuilder olha para o seu corpo da mesma forma que um escultor olha para a estátua que esculpe: de fora. Permite-lhe trabalhar o seu próprio corpo como a um objeto externo, exterior à sua consciência. Para ele, não existe diferença entre apreciar o seu corpo ou o corpo de um outro bodybuilder; e essa apreciação é vazia de sexualidade, é focada na técnica, nos resultados, como um crítico de arte aprecia uma escultura. O corpo é trabalhado para lá dos limites naturais, a distância entre a mente e o corpo permite transcender a dor e abraçar o rigor e a disciplina que o bodybuilding requer. O corpo é seu mas não é parte de si, é um objeto funcional a ser trabalhado, polido, construído e melhorado com um propósito estético e não funcional. O corpo de Schwarzenegger não age, aparece. E todos os outros querem aparecer como o dele.

Se esta confusão do género e distância do corpo e da mente nos pode ensinar alguma coisa, que seja a facilidade com que é assimilada pelo mainstream. Se não é difícil entendermos o bodybuilding ou os corpos que são trabalhados para as competições mas que existem para lá delas, também não será difícil imaginarmos um futuro em que qualquer corpo se distancie da mente, da identidade albergada, corpos e mentes simultaneamente masculinos e femininos, tão simultaneamente que não existe diferença. Pode o bodybuilding dar-nos isto? Pode o corpo de Schwarzenegger ser a metáfora para uma sociedade livre das obrigações do corpo e das limitações do género?

1 Berger, J. (1972). Ways of Seeing. Penguin Books. Londres. (trad. portuguesa: Modos de Ver. 2018. Antígona. Lisboa.)

2 Bordo, S. (1999). The male body: A new look at men in public and in private. Farrar, Straus and Giroux. Nova Iorque.

3 Butler, J. (1990). Gender Trouble. Routledge. Londres. (trad. portuguesa: Problemas de Género. 2017. Orfeu Negro. Lisboa.)

4 Fussell, S. (1991). Muscle: Confessions of an unlikely bodybuilder. Abacus Books. Londres.

5 Richardson, N. (2004). The queer activity of extreme male bodybuilding: gender dissidence, auto-eroticism and hysteria. Social Semiotics. 14:1: 49-65.