2 MAR 2021, 18h30 | ONLINE
Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens
de Friedrich Wilhelm Murnau
Alemanha, 1922, 94'
Sombra de vida, um filme-sombra
Joana Carreira, Licenciatura em cinema
Com aquela que é primeira adaptação cinematográfica de Drácula, de Bram Stoker, Murnau criou uma linguagem estética e visual do terror completamente original, que enformou a grande maioria dos filmes de terror e mistério posteriores e transformou, assim, Nosferatu numa obra de culto. As sombras do vulto do vampiro e das suas ameaçadoras mãos como garras, por exemplo - quantas vezes não vimos presenças análogas em filmes subsequentes.
A personagem mais intrigante, para além do próprio vampiro, será Ellen que, a contrário de Hutter, naif e ingénuo, é cautelosa e previdente, desde o início sentindo a ameaça que se avizinha, quase como se lhe fremisse no sangue. Nos seus pressentimentos angustiantes e transes, de sensibilidade apurada, é a representação do Bem puro que faz a ponte com o sobrenatural maligno, sacrificando-se, na que será das mais belas e bem conseguidas cenas do filme, em que o seu coração é esmagado pela sombra das garras de Nosferatu.
Por sua vez, Nosferatu, muito diferente da personagem original de Bram Stoker (vampiro aristocrata, sofisticado, sedutor), é um ser quase animalesco, cadavérico e repugnante, pálido como um fantasma, com dentes de roedor e unhas longas como garras, de quem pouco conhecemos e que quase não “fala”. Neste sentido, não é uma personagem com densidade pessoal, mas a personificação poderosa de uma ameaça oculta, malévola, mórbida e sub-reptícia, que em tudo causa repulsa e que alastra o terror e a morte por várias vias: o sangue, a loucura, a peste.
Apesar da tendência expressionista frequentemente apontada, não podemos deixar de ver nesta sinfonia terrífica uma clara intenção realista de alimentar e fortalecer o mito do vampiro, de o apresentar como algo plausível, o que contribui ainda mais para o temor causado. Os paralelismos estabelecidos pela personagem do Professor Bulwer - do pólipo “transparente, quase imaterial” “como um fantasma” a parasitar outro ser, ou da planta carnívora a devorar uma mosca “como um vampiro” – remetem para um contexto biológico, para o “misterioso funcionamento da Natureza”, em que estão latentes essas características-sombra, degeneradas e perversas, inclusive entre nós, que são activadas por obscuros poderes. Ademais, não obstante o baixo orçamento e sendo bastante incomum à época, as cenas exteriores foram filmadas in loco. As filmagens decorreram nas cidades alemãs de Wismar e Lubëck e também nos Cárpatos, onde se situa a Transilvânia, servindo o Castelo de Orvsky, na Eslováquia, como o castelo do vampiro. A miríade de sequências nas cidades, florestas, montanhas, mar, rio e praia, compõem uma atmosfera intensamente envolvente e credível, como se de facto o sobrenatural pudesse participar nesta Terra. Do mesmo modo, os contrastes de luz e escuridão estão permeados de simbolismos e prenúncios, numa utilização da iluminação precursora da parte do realizador.
Nosferatu é uma sombra da vida, literalmente, traz consigo a sombra, assolando aqueles e aquilo por onde passa, e isso só é possível ser feito, precisamente, através do cinema - um jogo de luz e de sombras, que assombra o espectador. Que Murnau tenha realizado isto, é deveras magnífico.