24 MAI 2022 - 07 JUN 2022
Programação de João Pinto
A anestesia enquanto lugar comum
O título deste ciclo (Tudo Bem, Tudo Bem) repete a mesma expressão duas vezes. E por muito ao acaso que o possa parecer quando o fazemos, a verdade é que, cingido no particular expressionismo de dizer “tudo bem”, parece-me a mim que o nosso quotidiano é repleto destas repetições, que, na verdade, não se reforçam mas por vezes se enfraquecem pela segunda vez que são ditas, e que duplicar a resposta a uma possível e banal pergunta, translada-se de um espaço afirmativo e sereno para um anestesiar na continuação de viver.
Estes três filmes surgem na afirmação da existência dessa anestesia, de um mundo invólucro naquilo que pode ser um estado de ser, um marasmo temporário ou até uma extensão de um futuro trauma. Nestas três obras conseguimos ver que a residência comum são esses mundos enevoados onde cada um com cada qual se alberga em portos seguros, em todos os casos, pessoas.
Seria demasiado fácil olhar para as linhas que se desenham em cada filme, mas são as entrelinhas que nos fazem perceber o esboço maior destes mundos criados. Seja-o, por exemplo, na neve de Buffalo, onde o trauma de infância e familiar é combatido através de uma negação que se prende a um homem e cuja única esperança está dentro da sua solitude, e na companhia de alguém. Desprender-se desse passado e dessa âncora que é explorada de tão sensível forma por Vincent Gallo. Este vai-nos evocando memórias através de espaços, de humor dilacerado enquanto herança de um falso sonho americano e de uma frustração permanente que não se deixa fugir das cores frias que Gallo nos pinta.
Contudo, e nos restantes casos, tudo é vivido com mais alguém. E é nesse ato de quase-salvação que se interpela a ligação narrativa que une este ciclo. No caso do filme de Gallo é um ex-recluso e uma bailarina raptada, que nos suscita sempre a dúvida em relação ao onirismo da sua existência. Em Kitano há o ponto de vista de um sentimento de perda que se avizinha e um mundo que não deixa viver o herói, um simples bucolismo e a procura da harmonia com a sua esposa que está a falecer. E em toda a violência que Kitano nos mostra, percebemos a busca constante pela sua adversidade, a busca no consolo e o refrigério em estar com alguém. E apenas estar com alguém.
O trauma é, portanto, invocado, é chamado, inevitavelmente, às personagens, mas também ao mundo que eles habitam. No caso de Angelopoulos, o nevoeiro e a reminiscência de uma figura paternal levam duas crianças a uma jornada desolada, despojada de proteções, onde a inocência é entregue ao mundo na sua forma mais intransigente. E, mais uma vez, dois irmãos, duas pessoas que se agarram numa construção feita de névoa e habitada por fantasmas que até então não existiam.
Em Tudo Bem, Tudo Bem passamos por estas três viagens. Que se fazem ecoar, e pessoalmente ainda me ecoam pela mestria na sua execução, na sua palavra e, acima de tudo, por um sentimento estranho, adverso e difícil de explicar. Da sua própria forma, ainda que a risco de sobrepôr a pessoalidade a outra coisa qualquer, estas mesmas pessoas se unem por entre uma certa neblina.