Carta Branca a Diogo Costa Amarante · Cineclube EA

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Vinil Verde
de Kleber Mendonça Filho
Brasil, 2004, 16’
+
American Reflexxx
de Alli Coates
Estados Unidos da América, 2015, 14’
+
The Centrifuge Brain Project
de Till Nowak
Alemanha, 2011, 7'
+
Forensickness
de Chloé Galibert-Lainé
França, 2020, 49’

 

 

23 FEV 2021, 18h30 | ONLINE
Carta Branca a Diogo Costa Amarante

"https://off_line.com"

Numa época de distanciamento social, em que cada vez que saímos de casa colocamos uma máscara que nos cobre parcialmente o rosto, em que o encontro com o outro é sentido como perigoso e em que existimos mais online do que offline, que realidade nos espera no futuro? Aproveitaremos esta suspensão do tempo para nos repensarmos nas relações, dentro e fora de casa? Como será o reencontro com o outro? De maneiras diferentes, declinando estas e outras perguntas numa interrogação das tensões entre o individual e o social, os quatro filmes que aqui se põe em diálogo surpreendem em flagrante – e, como tal, questionam – as relações familiares, o pavor da alteridade e as representações da realidade: três formas de fuga.

No filme Vinil Verde, de Kleber Mendonça Filho, uma menina emancipada ousa desafiar a autoridade da mãe para seguir o seu desejo de ouvir o disquinho verde. A cada transgressão, escolhendo o caminho do pensamento próprio, enfrenta – aparentemente sem medo e sem culpa – a proibição imposta pela mãe que, ao ser constantemente posta em causa, vai simbolicamente sendo desmembrada. Neste caso, tratando-se de uma ficção com contornos alegóricos, somos surpreendidos pela construção subversiva onde é o corpo que exerce a autoridade opressora que recebe as represálias da desobediência. A menina é, por sua vez, mergulhada numa estética de terror, por ser anormalmente autodeterminada. Não deixa de ser inquietante que a parte mais fraca desta relação consiga manter-se vertical, totalmente imune à chantagem com a qual se pretende fazer-lhe cumprir uma lei, imposta sem razão. Mas, conclui o narrador num tom pessimista, essa mesma menina surpreendentemente transgressora, teria mais tarde uma vida em que “ela própria se apaixonou, teve filhos, e a eles deu-lhes todo o seu amor, e todos os seus medos e as mais profundas aflições”.

Se esta parábola psicanalítica nos fala da repressão do desejo no foro do doméstico e do familiar, num jogo de oposições de um para um, no filme American Reflexxx, de Alli Coates, a questão passa para a esfera pública, para o âmbito da repressão exercida pelos coletivos que operam numa lógica identitária grupal, onde os mandamentos da mãe imaginária nunca foram postos em causa. Recorrendo ao dispositivo de uma performance filmada, uma dupla de mulheres – uma a gravar, a outra a deambular sozinha pela multidão – regista o comportamento do corpo coletivo quando estruturado e mobilizado por princípios e ideias de identidades normais. Neste caso, ao identificar o corpo, a roupa e a máscara que a performer usa como elementos estranhos, não normais, o grupo rapidamente se organiza numa espécie de enxame persecutório que pressiona o corpo classificado como aberrante a recuar na sua afronta, a abdicar imediatamente da ousadia da autodeterminação. Mas, tal como a menina do disquinho verde, não obstante a ameaça, a performer mantém o seu comportamento, ignorando as ameaças, por vezes até dançando. Contudo, talvez por tratar-se neste filme da realidade e não de uma construção alegórica, não é quem reprime que se desintegra, mas antes o mais forte, que dá imediatamente início ao ritual repressor. Primeiro, objetualizando o corpo da transgressora, criando assim um regime de exceção ao dever de empatia, suspendendo a culpa, para, finalmente, num clímax catártico que todos parecem querer ver, ou filmar (não por acaso seguem de telemóvel em riste, o equivalente ao imaginário das tochas num cenário medieval), poder concretizar, disferir o golpe talionesco que, transformado em imagem de entretenimento, numa excitação demoníaca, devolve ao grupo um desenlace exemplar (e espetacular) através do qual se repõe a justiça, livrando-os, portanto, do mal. 

E se há quem defenda a expressão artística como a melhor forma de exteriorização das pulsões destrutivas, quer em relação a si próprio, quer em relação ao outro, entramos no universo do hiperbólico parque de diversões concebido pelo Dr. Laslowicz no filme The centrifugue brain Project, de Till Nowak. Este engenheiro sonhador, percebendo a razão pela qual tantos são seduzidos a canalizar as suas angústias e medos numa excitação infantil de culpabilização do outro, propõe-nos um cardápio de máquinas, tão extravagantes quanto justas para lidar com as forças que estão em causa. Com estas máquinas, resolve, por isso, um problema fundamental: como oferecer escapismo, alienação e transe, sem que isso tenha de ser alcançado através da centrifugação do outro? 

Pela mesma via que, no seu processo de pesquisa, o Dr. Laslowicz conclui que a gravidade é um erro porque nos traz sempre de volta à terra – donde, toda a vida ser, na verdade, um esforço para escapar da realidade – entramos no território do último filme, Forensickness, de Chloé Galibert-Lainé. Também aqui convidados a seguir numa viagem imprevisível, neste caso, recorrendo a uma maquinaria narrativa que não mascára, mas celebra as contradições. A grande tese do filme reproduz o modelo argumentativo que identifica como problemático e, desembaraçando-se de dogmas quanto ao que o cinema é ou pode ser, cria uma vertiginosa forma escheriana, uma espiral que nos faz girar pela mecânica das ideias e do pensamento. Assim se complexifica a intuição manifestada pelo engenheiro do filme anterior. Se a vida é um esforço para escapar à realidade, que realidade é essa de que se pretende fugir? Estaremos a falar das narrativas que se projetam sobre as imagens do real? Mas quem imita quem? É a realidade que imita a ficção, ou a ficção que imita a realidade ficcionada? E o que resulta desse loop? Estaremos reduzidos a uma existência dentro de uma realidade representada? E o que decorre desta nova realidade? Uma mundividência constituída por representações estereotipadas, ideologicamente validadas, quiçá um caminho de não retorno, se nos ativermos à própria estrutura lógica do pensamento?

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