"Uma Questão de Moralidade"
Programa do Ciclo:
HAPPINESS (30 NOV)+ info
A COMÉDIA DE DEUS (07 DEZ) + info
SALÒ O LE 120 GIORNATE DI SODOMA (13 DEZ) + info
Texto do ciclo
30/11/2021, 18h30 | AUDITÓRIO ILÍDIO PINHO
Happiness
de Todd Solondz
Estados Unidos, 1998, 134'
Sinopse
“Encontrando a alegria em Happiness”
por Gonçalo Eugénio (argumentista)
O primeiro contacto que tive com Solondz dá-se algures no verão de 2019, quando via as suas obras para me preparar para o encontro com o mesmo num evento de cinema em que participava. O choque foi imenso e prazeroso.
Happiness é a sua obra mais conhecida talvez porque resume a sua fórmula ao essencial, traduzida por Solondz numa frase que me disse a meio de uma conversa: “Faço filmes para me poder rir e não me matar”. A diferença entre esta obra e qualquer outra de Solondz é que existe uma total confiança por detrás do sentimento de que, mesmo no choque ou no “descarrilar”, há uma abertura para o filme se deixar mover pela alegria macabra desses momentos.
Traçando um comentário mordaz sobre as suas origens, Solondz retorna àquele tufo fértil que é o subúrbio americano, esculpindo uma superfície flácida que nos deixa espreitar para desejos e ansiedades dormentes. Solondz traça uma trama consciente do seu lado pessoal; é um filme terrível e absurdamente consciente do desejo de não se querer estar sozinho.
A ideia de se estruturar um filme à volta de três irmãs – que, por sua vez, nos relembra Tchekhov assim como Woody Allen em Hannah and Her Sisters – foi concebida para interligar as três histórias à mesma ideia. Joy (Jane Adams) mostra-se determinada a viver feliz, mas o seu amor verdadeiro ainda não apareceu. Trish (Cynthia Stevensen), casada, desespera pois Joy nunca “terá tudo na vida” como ela tem. E Helen (Lara Flynn Boyle) é uma autora best-seller que escorregou para uma vida de amargura que só pode ser aliviada com sexo kinky. Os seus pais já viram melhores dias no seu casamento: a sua mãe pondera o divórcio enquanto o pai pondera a morte, e os homens na vida das três irmãs são tão ou mais perturbados.
Pode-se argumentar que, como Solondz o faz, “um filme como Happiness apenas pode surgir de uma sociedade com uma cultura repressiva” e, no entanto, nada no filme aparenta ir para lá do que se discute no noticiário todas as noites, ou nos tabloides virtuais. A diferença é que nos media que consumimos aparenta existir uma voz moralística, apesar de sempre ao lado de um tratamento de exploração que dá aos sujeitos de notícias CMTV um close-up com cariz de freak-show. No filme, apesar de profundamente atormentadas, as personagens não são alheias de humanidade. Em Solondz, a sua beleza consiste em existir espaço para um distanciamento irónico perfeito para que consigamos conectar com as suas profundas tristezas, mas também para nos rirmos delas.
7/12/2021, 18h30 | AUDITÓRIO ILÍDIO PINHO
A COMÉDIA DE DEUS
de João César Monteiro
Portugal, 1995, 170'
Sinopse
“A Quintessência dos Perfumes”
por Jorge Guerra e Paz
A Comédia de Deus é o “filho do meio” de uma trilogia iniciada com Recordações da Casa Amarela e que termina com As Bodas de Deus. Uma das obras primas do cinema europeu que conta no seu palmarés com um prémio do júri do Festival de Veneza em 1995.
Reencontrámos o proscrito e libertino João de Deus que, deixando para trás uma vida de indigência, é agora mestre geladeiro na gelataria Paraíso, propriedade da ex-prostituta Judite (Manuela de Freitas), uma mulher movida por uma ambição e desejos aspiracionais desmedidos. João de Deus nutre um desprezo profundo pela mediocridade instalada, pelas convenções sociais e pelos códigos morais de uma sociedade apócrifa que rejeita liminarmente e, divide o seu tempo entre a busca incessante pelo Santo Graal dos gelados, o perfume (sabor) perfeito, a sedução de raparigas mais novas e o seu livro dos pensamentos onde coleciona e cola pelos púbicos femininos devidamente catalogados e anotados.
Todo o filme é uma delirante deambulação pela Lisboa dos anos 90, habitada por personagens pícaras como o sanguinário talhante Evaristo e as desbragadas peixeiras de Alfama. A mescla de referências clássicas e eruditas com brejeirices inusitadas surge, assim, como uma marca de água no cinema de João César Monteiro. Outro exemplo cabal dessa amálgama magistral é a banda sonora do filme na qual, João César Monteiro, que possuía um conhecimento enciclopédico de música clássica, mistura Haydn, Monteverdi e Quim Barreiros.
Para lá da espuma do picaresco existe todo um subtexto digno de nota, aí surge como personagem central o Portugal dos anos 90, atavicamente atrasado e reverencial que, recentemente aceite no “Clube da Europa”, almeja modernidade e ascensão social a todo o custo. Exemplos disso a evocação do bordão “Ó Evaristo tens cá disto?” extraído de O Pátio das Cantigas, epítome da cinematografia do Estado Novo, como uma referência a um país retrógrado que teima em existir, e destaca-se também a genial cena do evento de apresentação do gelado ao investidor francês, onde não falta a presença do Ministro medíocre e “lambe-botas” que ambiciona chegar a Primeiro-Ministro, o Cónego, que representa o clero, sempre mais empenhado nas suas relações com o poder do que com o povo que apascenta, e o mordaz discurso de João de Deus que faz com que tudo redunde numa parola e provinciana cerimónia, bem ao estilo das pomposas inaugurações que o poder politico da época protagonizava.
De realçar ainda como elementos da grandeza desta obra, a superior fotografia de Mário Barroso, o rigor aplicado na mise-en-scène e a mestria dos planos só ao alcance dos grandes mestres.
Realizador maldito, intelectual desvalido, marginal erudito, poeta louco, génio inadaptado, tudo isto foi João César Monteiro, voz incómoda e ainda tão necessária nos dias de hoje. Lamentavelmente, os episódios anedóticos da sua vida rocambolesca ofuscam, por vezes, o magnífico legado que deixou ao cinema europeu, e impedem que lhe seja feita a justiça merecida e que olhemos para ele como um dos mais importantes e interessantes cineastas de todos os tempos.
13/12/2021, 18h30 | AUDITÓRIO ILÍDIO PINHO
SALÒ O LE 120 GIORNATE DI SODOMA
de Pier Paolo Pasolini
Itália, França, 1975, 117'
Sinopse
“Saló e a potência da (não)recursividade histórica”
por Maria Coutinho (professora e investigadora)
Em Saló, ou os 120 dias de Sodoma, Pier Paolo Pasolini recorre à estrutura de A Divina Comédia, de Dante, adaptando Os 120 dias de Sodoma, de Sade, que recoloca no momento final da experiência fascista italiana, entre 1944 e 1945. A República de Saló, a que o título alude, dura cerca de ano e meio, entre Setembro de 1943 e Abril de 1945. A fundação da República, estado fantoche sob alçada da Alemanha Nazi, procurava contrariar o avanço das tropas aliadas pela península italiana, após a conquista da Sicília a partir do Norte de África pelos Aliados ter precipitado a demissão de Benito Mussolini pelo Grande Conselho Fascista. Em sequência, o Rei Victor Emanuel III da Itália negoceia um armistício. Mussolini, que, entretanto, é preso e depois resgatado para liderar a nova república, formalmente sedeada em Roma, fixa-se em Saló, localidade situada nas margens do Largo de Garda, no norte de Itália, de onde provém o nome pelo qual ficará conhecida a república fascista.
Contudo, não obstante o rigor do guarda-roupa ou da afirmação clara do espaço-tempo do filme (1944 - 1945 no Norte de Itália sob ocupação nazifascista, pode ler-se num intertítulo inicial), Saló, ou os 120 de Sodoma não é uma recomposição histórica da Itália fascista, tão pouco da Itália fascista sob ocupação nazi. Em síntese, retrata o retiro de um Duque, um Bispo, um Magistrado e um Presidente numa villa, para onde é levado um conjunto de jovens capturados na região e por si escolhidos. Esse retiro obedece a um regulamento assinado pelos quatro, união confirmada ainda pelo casamento cruzado das suas filhas. Na villa, onde se encontram ainda soldados igualmente arregimentados à força nas redondezas, bem como quatro prostitutas de meia-idade que animarão as orgias, tanto as filhas, como os jovens seleccionados serão presos, violados, torturados e, finalmente, mortos. Para lá do choque do abjecto, que aliás foi eficazmente sintetizado por um crítico norte-americano ao definir Saló como um filme que é essencial ver mas impossível de ser olhado, talvez o final do Prefácio de uma das obras referidas na lista de leituras que Pasolini expõe nos créditos iniciais, Sade, Fourier, Loyola de Roland Barthes, possa desviar esse foco imediato do filme:
"A intervenção social de um texto (que não se realiza forçosamente no tempo em que o texto surge) não se mede nem pela popularidade da sua audiência, nem pela fidelidade do reflexo económico-social que aí se inscreve ou projecta a quaisquer sociólogos ávidos de o recolher, mas ao invés pela violência que lhe permite exceder as leis que uma sociedade, uma ideologia, uma filosofia que estabelecem para si próprias, a fim de acordarem entre si um belo movimento de inteligibilidade histórica" (Barthes, 2002, p. 707).
Neste sentido, Saló transcende a denúncia de vícios privados ou a possível alegoria à objectificação do homem implicada pela guerra ou pela ocupação. E pode ainda ultrapassar a questão sobre qual o limite possível da disposição do homem pelo homem, mesmo num momento em que cada um daqueles quatro indivíduos já nada teria a perder – recorde-se que Mussolini, a par de outros, é morto na sequência da queda da Itália fascista.
A referência a Dante, alguns dos cenários renascentistas ou, por fim, a adaptação de Sade, que escreve no Século das Luzes, pontuam e contrariam uma história da modernidade como um projecto inacabado, eventualmente humanista, que interessava recuperar. Abrindo-se a hipótese de que as cenas finais confirmem uma certa recursividade, na referência histórica aos actos de tortura. Fazendo com que, por um lado, o excesso comprove a certeza da violência nazifascista, anulando um possível recalcamento. Mas igualmente que esse excesso implique a assumpção de que aquela recursividade não coloca apenas em causa uma inteligibilidade histórica como consenso do presente sobre o passado, mas também as condições da sua persistência contemporânea.
Barthes, R. (2002). Sade, Fourier, Loyola [1971]. In Oeuvres Complètes. Tome III: 1968-1971.