14 MAR 2023 - 21 MAR 2023
Programação de Diogo Pinto
llusions can’t come to life
O termo trauma tem origem na Grécia Antiga, sendo utilizado, à época, como sinónimo de “chaga”, remetendo para lesões físicas. Hoje em dia, refere-se a uma lesão física grave, normalmente prolongada ou podendo levar à morte, sendo causada por um determinado fator externo. Simultaneamente, é utilizado num sentido mais lato, definindo-se o trauma psicológico como dor emocional ou choque particularmente graves ou duradouros, sendo estes causados por um evento extremamente perturbador.
As personagens dos filmes que compõem este programa veem a sua existência invariavelmente alterada por eventos perturbadores. O seu comportamento é toldado pelo trauma, as suas ações são manifestação de um desejo desesperado de regresso à normalidade.
Em Belladonna of Sadness, a aldeã Jeanne é violada no dia do seu casamento pelo Senhor do castelo. Incapaz de segurar os cacos do seu estado mental e assombrada pelo trauma, sucumbe a um pacto com o Diabo, que lhe concede poderes mágicos para ajustar contas com o seu passado. A partir do momento em que Jeanne se torna uma bruxa, o filme adota uma linguagem caleidoscópica e surrealista. E, tal como sucede com o espectador, talvez nem Jeanne saiba o que é real e o que é fantasia na sua resposta ao trauma.
Este deslocamento acompanha também a protagonista de Perfect Blue, Mima Kirigoe. Com efeito, é comum, como reação ao trauma, a adoção de uma temporalidade baseada na repetição e na dificuldade em assimilar uma cronologia. Não é possível inteligir um passado, nem um futuro. A vítima pode estar, então, condenada a um presente permanente, conceito que escolhemos para dar título a este programa.
Mas, durante o sono, o trauma ressurge, sem as barreiras impostas pela consciência (“os sonhos atualizam os acontecimentos traumáticos”[1]). O filme espelha a importância do estado de vigília na discussão sobre ao trauma ao tornar-se, ele próprio, uma espécie de sonho febril. Mima, e o espectador, vão perdendo o discernimento do real, oscilando entre a verdade e a fantasia, vagueando por repetições e ilusões que espelham o estado mental da protagonista. O seu presente permanente é cada vez mais alucinatório.
E se, em Perfect Blue, a resposta ao trauma é o onirismo, podemos também afirmar que a causa do mesmo é marcada pelo estranhamento. Mima ultrapassa várias experiências, cada vez mais perturbadoras, ancoradas na realidade, mas aquela com o maior peso no seu cada vez mais instável estado mental é meramente a encenação de uma experiência traumática. Visando manter os pés em terra firme, Mima relembra um mantra tranquilizador: “illusions can’t come to life”.
É certo que o fator perturbador externo nem sempre retorna ou está presente, mas a sua marca permanece indelével na psique destes personagens. A pressão sobre Jeanne e Mima é tal que a reação terá sempre que ser violenta. Isto se acreditarmos que a reação não é ilusória.
[1] Klautau, P., et. al. (2016) – Do Traumático ao Trauma. Psicologia em Revista, 22, 3.