16 Abr às 18:30
Auditório Ilídio Pinho
Sessão Especial em colaboração com o Não foi Cabral: revendo silêncios e omissões e em antecipação da aula aberta de Margarida Cardoso que decorrerá no dia 18 de Abril, pelas 18:30 no Auditório Ilídio Pinho.
Os mesmos gestos, os mesmos lugares, as mesmas mãos
As feridas e as falsidades do passado colonial são uma constelação que o cinema de Margarida Cardoso, que viveu em Moçambique até aos 12 anos, tem procurado habitar. Uma habitação feita de ficções (A Costa dos Murmúrios, 2004; Yvone Kane, 2014; Banzo, 2024) e de documentários (Natal 71, 1999; Kuxa Kanema, O Nascimento do Cinema, 2003; Understory, 2019; Sita: A Vida e o Tempo de Sita Valles, 2022). Mas talvez essa passagem não seja muito rígida. Banzo parece ter ido buscar algo à viagem "recente" de Understory a São Tomé e ao universo do comércio do cacau; ou A Costa dos Murmúrios e depois Yvone Kane ao cinema moçambicano prometido e "destruído" de Kuxa Kanema.
Aliás, em Understory, guiada pela voz doce e suave da própria realizadora, a investigação dos trajectos históricos e económicos da plantação do cacau é apenas parte de uma viagem pessoal e sensorial, como uma balada triste e atenta, que vai pondo o cinema na mira da escuta das árvores e dos animais, dos planos que parecem ter todos os seres, dos mutualismos próprios da natureza.
Da voz off de Margarida Cardoso retiramos muitas coisas belas: dela desprende-se uma ideia de familiaridade com o espaço africano como se esse passado fílmico habitasse, fosse o understory de Understory; a sua voz é a bússola de uma viagem que é mais um fluir e uma fruição, onde o tempo vai apaziguando, um guia de uma curiosidade que transcende em muito aquilo que poderia ser o mais evidente num documentário de consciência social acerca da produção e comércio do cacau. Margarida Cardoso não se escusa a fazer o irónico raccord entre o escravo de outrora e o escravo de hoje, os novos-empresários-pobres-para-sempre que apanham o cacau e nem sequer nunca se aproximaram de um aeroporto e suas gifts shops onde o chocolate será vendido a preços que nada têm a ver com o que recebem.
Fá-lo, dizia, de forma engenhosa, colocando lado a lado, em split screen como dispositivo de ligação entre espaços e tempos, filmes coloniais portugueses de finais dos anos 20 e anos 30 e imagens de hoje.
A história encolhe-se, rima, pois, de forma empobrecedora.
Como se escuta a dado momento, são "os mesmos gestos, os mesmos lugares, as mesmas mãos" que perpetuam a exploração colonial e capitalista por outros meios.
Mas Understory parece rebater esse destino com uma proposta do cinema.
Neste conto botânico está esse conjunto de coisas indistintas e misteriosas (ficcionais, apetece escrever) que a câmara de Cardoso intui terem tanta ou mais importância para compreender toda essa dinâmica da relação comercial em torno de um fruto colhido em São Tomé e em outras zonas delimitadas de África e América do Sul.
Por debaixo da história estão as formigas em trocas mutualistas com outros bichos em busca de um pouco de açúcar do cacau, o cacaueiro que dá centenas de milhares de flores e só 0.1% de frutos, mas também um cão prestes a adormecer, um pássaro a debicar à chuva. É este olho atento aos detalhes que permite agigantar o espaço e o tema do filme.
Por extensão, o espectador devém viajante numa travessia que apetece que não tenha fim. Um espectador intemporal, curioso, em fusão com o cinema e com a abertura de espírito, genuína e bela, de Understory.
Carlos Natálio (professor da Escola das Artes, programador e crítico)