25 MAI 2022 - 08 NOV 2022
Programação de Luísa Alegre e Mariana Machado
Crise de Fé
A fé pode ser definida como o ato de acreditar em algo ou alguém de forma irracional e incondicional e permeia a Humanidade há tanto tempo quanto esta existe, sendo inexplicável pelos que nela, seja qual for, creem o salto que a separa da racionalidade com que nos baseamos usualmente. E se o ato de fé preenche a História da Humanidade desde que esta assim se denomina, a dúvida perante ela acompanha-a de igual forma, ainda que a contradizendo. Aliás, a condição necessária para a fé em algo é que não se questione este algo, pois tal questionamento nunca terá resposta que sacie a necessidade de racionalidade perante determinada questão. A dúvida perante a fé é, portanto, contraditória em relação a esta e é exatamente por isto que um crente, quando se encontra em determinado contexto que o obriga a questionar tal crença, se vê numa posição de crise.
Selecionámos estes três filmes para constituir este ciclo, pois julgamos apresentar abordagens bem diferentes na forma com que as personagens lidam com as respectivas crises de fé, seja por questões de contexto histórico, de relação com a religião ou de experiência pessoal, sendo possível desenhar um fio condutor que os une sequencialmente.
Começamos com Ordet, um filme que explora de forma muito explícita a fé e a forma com que a dúvida perante esta surge num núcleo familiar devoto cristão durante o início do século XX, em que cada personagem apresenta uma relação muito específica com ela. O pai da família, que tanto valoriza a religião, assiste aos seus filhos a seguirem cada um o seu caminho: o mais velho, Mikkel, está apaixonado por uma mulher de religião diferente; o do meio, Anders, tornou-se ateu e o mais novo, Johannes, é doente mental e acredita que é Jesus Cristo. A família em conjunto luta para lidar com a doença de Johannes, mas é também posta em causa nos diferentes indivíduos a sua própria fé e a sua relação com esta.
O segundo filme deste ciclo, Údolí Včel é aquele em que a crise de fé surge de forma mais subliminar. Aqui, o protagonista lida com uma crise não só referente à sua fé, mas ao sentimento de pertença a uma comunidade que lhe foi imposta. No entanto, se a personagem não surge explicitamente questionando a sua fé, esta é toda a base constituinte e formadora dos princípios e valores que constituem a comunidade com a qual ela não se identifica, ou que pelo menos questiona. Dúvida esta que, se por um lado despoleta uma fuga do protagonista, no caso do seu melhor amigo é impensável e uma traição injustificável. E é neste conflito entre dois amigos que lidam com a fé e o compromisso de formas extremamente contrastantes que o filme encontra o espaço para colocar em causa uma série de princípios e crenças que no período em que a narrativa se desenrola eram muito mais dados como adquiridos do que nos dias de hoje.
Numa perspetiva mais recente, terminamos com First Reformed, um filme cujo protagonista é ministro da Primeira Igreja Reformada no norte do estado de Nova Iorque. O filme desenrola-se a partir do momento em que este entra em contacto com um homem que está de tal forma perdido no mundo que o próprio padre começa a aperceber-se que é cada vez mais difícil ter fé. A crise aqui representada difere das restantes por não ser referente apenas à fé de uma personagem particular, mas acima de tudo à fé coletiva do ser humano. O protagonista encontra-se, portanto, num momento de crise por se aperceber de uma fé muito mais geral que afeta as pessoas que o rodeiam. Assim, o filme funciona como conclusão perfeita para este ciclo, por apresentar a forma com que este tema ganha extrema relevância e destaque num contexto contemporâneo, permitindo perceber o porquê de um ciclo com este tema fazer especial sentido nos dias de hoje.