10 OUT 2023 - 31 OUT 2023, 18:30 | AUDITÓRIO ILÍDIO PINHO
Ciclo Corpos Animistas
Corpos Animistas
Animismo (do latim animus, “alma, vida”) é a cosmovisão em que entidades não humanas (animais, plantas, objetos inanimados ou fenómenos) possuem uma essência espiritual.
Ao contrário do muitas vezes pensado, a crença animista não remete necessariamente ao conceito de “animal”, mas ao de alma, que por sua vez estaria presente em todos os seres, humanos ou não, como os animais, mas não só. Além disso, o conceito de animismo não tem em conta uma crença ou sistema de crenças concreto, de determinada cultura ou civilização, mas uma perspetiva comum que une de alguma forma diversas religiões e sistemas de crenças que, por mais distintas ou longínquas que sejam, apresentam este denominador em comum. Por outro lado, tendo isto em consideração, torna-se claro como a religião cristã e os valores que regem na grande maioria as sociedades ocidentais não englobam de forma alguma crenças animistas, muito pelo contrário. Aliás, o próprio facto de se abordar o animismo enquanto conceito isolado demonstra claramente como é uma perspetiva com a qual não lidamos naturalmente. Na verdade, a relação que estabelecemos com a Natureza é acima de tudo antagónica, onde ainda que seja obviamente assumida a nossa inclusão nela, é também colocada enquanto entidade exterior a nós, que muitas vezes apresenta obstáculos e deve ser combatida, ultrapassada, para se alcançar uma sociedade mais desenvolvida. Ora, a perspetiva que aqui pretendemos explorar não rompe com esta relação, pois não a toma sequer como ponto de partida. Ao invés disso, através de quatro sessões, aquilo que pretendemos que se torne ponto de reflexão é exatamente o contacto com experiências animistas que de alguma forma subvertem a forma com que intuitivamente nos relacionamos com a Natureza e as entidades não-humanas.
A questão centra-se então na questão: o caracterizaria este cinema animista?; o que o diferenciaria para lá de um cinema que apenas narrativamente esboçasse a separação entre humano e animal, por exemplo? Para isso, é importante levantar uma reflexão sobre o alcance desta separação entre Natureza e Cultura na forma com que nos relacionamos com a ficção, pois o antagonismo Natureza/Cultura rapidamente se torna um antagonismo Real/Inventado, que por sua vez origina uma separação entre Documental/Ficcional. Esta oposição é fulcral para entender a forma com que se organizaram as configurações maioritárias de expressão narrativa em contexto ocidental, onde um texto ou um filme será exclusivamente ou documental, relacionado com o real, o estado Natural, e que, portanto, terá como objetivo. de alguma forma. aproximar-se de uma Verdade presente nesta realidade, ou ficcional, portanto assumidamente inventado, enquanto criação cultural, e terá de assumidamente afastar-se de qualquer presunção de representar uma Verdade, mas ao mesmo tempo ser credível enquanto possibilidade. Com isto não pretendo assumir que não foram sendo criadas obras onde esta barreira não é de alguma forma quebrada ou manipulada, mas aquilo que proponho são quatro filmes em que ela não é sequer tomada como existente a priori. Sendo assim, aquilo que apresento enquanto “cinema animista” será um onde não só a crença animista terá uma dada importância narrativa no filme, mas, além disso, onde a própria concretização cinematográfica materializa ou reflete essa perceção e experiência com o mundo. Deste modo, o título do ciclo, Corpos Animistas, refere-se não só aos variados corpos e entidades que habitam estes filmes, mas também aos filmes em si, que são igualmente, por sua vez, corpos animistas. O primeiro filme, Kummatty, serve como ponto de partida, pela sua simplicidade e pela clareza na forma com que transparece a perspetiva que aqui abordei. Combinando um caráter realista com uma narrativa conduzida por perspetivas místicas, o sobrenatural surge organicamente, como que pertencendo à realidade do filme, que por sua vez é equivalente à nossa. Kummatty é um feiticeiro, mas Kummatty é também parte e fruto da Natureza. Da Natureza surge e para a Natureza volta. O segundo filme é Ching se / Green Snake, uma obra diametralmente oposta na sua estilização visual. Se este afastamento do realismo aparenta possivelmente afastar também o filme da temática deste ciclo, o lugar que este representa é de uma singularidade muitas vezes ignorada quando nos confrontamos com as potencialidades da ficção. Analisando o conceito de lenda, que se propõe a unir factos reais com irreais, estas histórias de expressão oral são usualmente resultado de uma romantização, um embelezamento ou até uma estilização em prol de uma narrativa que muitas vezes surge do real, mas que para ganhar peso dramático e simbólico se afasta deste. Este filme é uma lenda, num universo claramente estilizado, mas a simbologia traçável para o nosso é evidente. A ordem dos filmes aqui apresentados não pretende ser apenas cronológica, mas demonstrar também uma progressiva abstração, que por sua vez surge associada a uma ausência de necessidade de uma narrativa tradicional. Nesse sentido, segue-se Sud Pralad / Tropical Malady, um filme que nasce num contexto contemporâneo em que narração fictícia surge aliada a uma presença de atores não profissionais, experiências e histórias contadas por estes, locais realmente frequentados por aquelas pessoas. A história é fictícia, mas ao vermos o filme, a sensação de estarmos diante da realidade nunca nos abandona. É um filme sobre desejo e em que o paralelismo tão presente com o animal nos comove com a naturalidade com que encara este tema. Terminamos o ciclo com Sleep Has Her House, o único filme realizado em contexto ocidental. Se na sessão anterior já conseguimos observar uma progressiva dilatação da narrativa, que se aproxima da inexistência e é substituída por uma valorização da lentidão, das pequenas ações, de uma experiência de apreciação do mundo, fechamos o ciclo com um filme que progride essa ideia até ao extremo. Se se trata de um documentário experimental ou de uma ficção distópica onde os humanos já não existem é uma questão que ocupa toda a duração do filme. E ao fim de uma hora e meia, perguntamos se não poderão também aqueles cavalos, aquelas montanhas e aquelas cascatas ser personagens dos seus filmes.
Mariana Machado (aluna de Mestrado em New Media Art)