06 Nov a 12 Dez às 18:30
Ciclo Quadra de Ases
Auditório Ilídio Pinho
A mise-en-scène pelo fascínio e o fascínio pela mise-en-scène
Para o crítico francês Michel Mourlet (n.1935), a essência do cinema estava na sua mise-en-scène.
A singularidade da arte cinematográfica estava em fundamentar-se pela materialidade a favor da técnica.
A posição do homem diante à câmera era mediada por uma organização de seu próprio universo particular, de suas aspirações enquanto obra fruto de um produto do fascínio.
Tal fascínio só poderia ser alcançado se o equilíbrio entre o real e a farsa fosse meticulosamente transposto pela tela branca do cinema, de modo a encantar o espectador, não como parte deste mundo, mas como observador distante, plenamente consciente de sua condição enquanto indivíduo frente ao espetáculo.
Mourlet exprime suas idealizações sobre o cinema no polêmico artigo Sobre uma Arte Ignorada1 em meio aos diversos debates sobre o que seria o cinema? (cabe ressaltar a enorme influência de André Bazin nessas discussões) e que permeavam a cinefilia parisiense entre os anos 1950 e 1960.
No cerne das discussões estavam os críticos da Cahiers du cinema hitchcock-hawksianos (Godard, Rivette, Truffaut, Rohmer, Chabrol) e sua política dos autores sobrepondo o autor à forma.
Do lado oposto, os mac-mahonistas (Pierre Rissient, Georges Richard, Michel Fabre, Jacques Serguine e Michel Mourlet – também crítico da Cahiers) faziam o movimento inverso ao propagar que a forma (mise-en-scène) deveria ser a principal e única autoridade num filme.
No contexto de apresentação, tanto do surgimento desse núcleo que se formou ao redor deste conceito quanto na extensão dos pensamentos que resultaram no texto de Mourlet, é impossível retratar tais eventos sem repousar sobre a história do cinema que deu a alcunha ao seleto grupo de críticos e cinéfilos.
Em atividade desde o final dos anos 30, o cinema Mac-Mahon, situado na avenida de mesmo nome, número 5, em Paris, próximo aos escritórios da Cahiers du Cinéma, desempenhava o papel de exibir filmes americanos exclusivamente em sua versão original legendada.
Sua única sala, com 150 lugares, concebida no estilo art déco, tornou-se ponto de encontro para Rissient, Richard, Fabre, Serguine e Mourlet, que passaram a frequentar o cinema assiduamente.
Foi pela relação simbiótica entre cinema e espectador que Rissient consegue convencer Emile Villion, diretor do Mac-Mahon, a programar They Live by Night (Nicholas Ray, 1948). Após o sucesso de exibição, Rissient começa a programar outros filmes, dentre eles, Whirlpool (1950) de Otto Preminger. Em 1955, Rissient programa The Lawless (1950) e M (1951), ambos de Joseph Losey; e nos anos subsequentes, programa filmes de Fritz Lang (centrados em sua fase americana), Raoul Walsh e outros filmes de Preminger, que até então eram pouco conhecidos pelo público francês.
A preferência pelos quatro diretores, somada à adesão do público diante do apelo das obras, resultou no reconhecimento de Villion, estampado no hall do cinema por meio de quatro retratos preto e branco de Preminger, Losey, Walsh e Lang – nomeadamente, a quadra de ases.
Usando como base o contexto de Mac-Mahon e o artigo de Mourlet – ambos historicamente e inerentemente conectados –, surge este ciclo que visa apresentar e discutir o papel da mise-en-scène por meio de filmes que integram o pensamento Mac-Mahon, não como uma aprovação da solidez argumentativa e teórica de Mourlet, mas como um estudo sobre a evidência desse fascínio provocado no espectador e como uma reflexão flagrante sobre o ato de posicionar em cena.
Por meio deste texto controverso e enigmático, Michel Mourlet direciona seu olhar para a exaltação do sensível nessa grande escrita cinestésica que é o cinema.
Nele, podemos indagar sobre esse fascínio inexplicável que pode ser sentido na interpretação viciante e encantadora de Gene Tierney em Whirlpool.
Ao mesmo tempo, podemos repudiar a imposição quase fascista de um endeusamento dos corpos – majoritariamente brancos e padronizados – como a única maneira de expressão plenamente cinematográfica.
Nesta intersecção entre o belo e o ditatorial, entre a mística da beleza e o rigor formal, surgem à luz os filmes apresentados neste ciclo com o intuito de evidenciar essa hipnose cênica por meio das relações entre os trabalhos dos quatro diretores favoritos dos seguidores da ideologia Mac-Mahon.
Mais do que uma simples apresentação do contexto e das condições para se chegar a esta concepção de fascínio, o ciclo propõe traçar paralelos na maneira como esses mesmos corpos se dispõem no mundo diegético, como o mundo responde a eles, suas ações e como elas se organizam pelas mãos da regência de seu criador.
O exercício está na talvez prematura tentativa de compreender o que leva a imagem do cowboy melancólico com traços edipianos de Robert Mitchum em Pursued, western pseudo noir de Raoul Walsh ressoar na personagem de David Wayne no remake de M, que por sua vez dialoga com as incertezas conspiratórias de Beyond a Reasonable Doubt e terminam por desaguar na – literal – hipnose de Whirlpool.
Se tudo está na mise-en-scène, como afirma Mourlet veementemente em seu manifesto, então é dela que partimos nossa busca pela compreensão do fascínio. Por hora, esses filmes podem servir como uma porta de entrada, ou melhor, uma exposição do que pode ou não funcionar.
O fato é que entre tentativas e erros, busca-se localizar nesta confluência de energias que dominam a sala de cinema.
Desse elemento mágico que nos invade e rouba nossa atenção, nos coloca em outro tempo ao seu comando, que nos absorve – ou quase isso.
Gabriel Luna (Mestrando em Cinema na Escola das Artes)