07 MAR · 18:30 · entrada livre
Auditório Ilídio Pinho
As Hiper Mulheres
“É que eu tenho vontade cantar”. Nas palavras da mulher idosa reside um dos motivos do pedido de um velho Kuikuro a seu sobrinho: que realize o Jamurikumalu, maior ritual feminino do Alto Xingu. O receio que sua esposa morra sem participar pela última vez do ritual se revela ao longo do filme como uma questão que transcende o que parecia se limitar aos sentimentos privados do velho no início da narrativa: as canções sagradas, as danças, o corpo e a memória viva são uma preocupação e uma tarefa coletiva.
Enquanto as mulheres começam a se preparar para o ritual, imediatamente confrontamo-nos com os percalços que nos coloca o filme: Kanu, uma das únicas cantoras do grupo que conhece todas as canções, se encontra gravemente doente. As tensões e belezas que envolvem a preparação do ritual coexistem no filme como um equilibrado jogo de forças que vão “dançando” a certeza de um fluir da vida que guia toda a preparação da aldeia.
Pelo olhar do realizador indígena Takumã Kuikuro, e dos não indígenas Leonardo Sette e Carlos Fausto, as Hiper Mulheres transpõem as fronteiras do filme etnográfico. A hibridez das escolhas narrativas entre documentário, silêncio, observação e atuação diluem a ideia do “outro” na experiência imersiva do espectador nesse fluxo que propõe a preparação do Jamurikumalu. Ao assistir o processo, somos também parte e entusiastas deste movimento de presença e memória. Não como uma preocupação de “perda”, argumento no qual sempre se ancorou o discurso etnográfico eurocentrado, mas como a celebração de uma cultura viva, contemporânea e ancestral.
A realidade pulsante e potente das “Hiper Mulheres” se materializa na força do corpo, na alegria, da transmissão da tradição oral, na objetividade e confiança sexual em questões que provavelmente constrangeriam o ocidente. Para os Kuikuro, corpo e sexualidade são matérias naturais. E nas figuras dessas mulheres guerreiras, as pistas das tarefas coletivas de reencantar, brincar, cantar e dançar os rituais através do próprio corpo-tempo são de fácil compreensão: fazer do próprio corpo movimento e canção e se espalhar pela terra.
Produções como essas, além de fundamentais para o fortalecimento da luta de povos originários, representam uma virada no paradigma da representação indígena e da natureza enquanto parte integrante e essencial da vida no coletivo. O que vemos também nos aponta como nos vemos a nós mesmos e como ritualizamos ou deixamos de ritualizar nossos próprios ciclos.
Ellen Lima (poeta e co-curadora do Ciclo de Conferências e Performances, Pisar suavemente sobre a Terra)